O instrumentista se apresenta no Teatro do Mundo, neste sábado, mostrando por que se tornou o grande nome do violão de sete cordas em Mato Grosso do Sul da última década; confira o bate-papo afiado e e risonho que o músico levou com o Correio B
O que quer dizer exatamente com o título do álbum?
Ao lançar para o mundo uma ideia, imaginei objetivamente as ferramentas que tinha em mãos para lutar pela minha autenticidade e proposta artística, e a conclusão foi simples: tenho apenas meu violão de sete cordas e meus poemas, são minhas armas, o meu fundamento diante da vida, a música, minha imaginação e as poesias que faço desde os meus 9 anos de idade. Agora, o que tem de especial neste trabalho é que as poesias são inspiradas em sonhos noturnos, os quais transcrevi e em seguida produzi sobre eles esses poemas.
Falando em poema, pode falar um pouco de sua relação com a poesia? Não a musical, mas aquela dos versos metrificados ou livres, que vem da literatura mesmo.
Quando tinha 9 anos, fiz um livro muito singelo, que hoje se perdeu nos mofos de uma casa abandonada, mas que na época foi muito importante para mim. Era como um diário. Nesse caderno, eu pude colocar as dores e angústias de uma criança inquieta, fazendo rimas, escrevendo palavrões e palavrinhas, falando da natureza e minha indignação diante das injustiças sociais. Minha tia fez um livro, mas depois eu me fechei para isso e fui para a música.
No meu doutorado na UFPR [Universidade Federal do Paraná], me reencontrei com Manoel de Barros [1916-2014], poeta que conheci na Educação Infantil, estudando no Colégio 26 de Agosto, no centro de Campo Grande, e que desenhou minha infância. Depois de ter lido dezenas de livros de literatura na vida adulta, encontro o “Memórias Inventadas” [que Barros lançou em 2008] e, ao perceber o amor dos arqueólogos em escovar ossos, tomei gosto por escovar palavras.
E o conceito do álbum? O que busca expressar com ele?
Esse álbum é inspirado em um livro sobre psicanálise, o qual me influenciou enormemente, por me fazer perceber que o inconsciente tem uma influência fundamental nos processos criativos dos artistas e, muitas vezes, não tem o devido reconhecimento quando tratamos da composição musical e a expressão artística em geral. Estou falando de “A Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund Freud [1856-1939], de 1900, um livro fundamental nos estudos do inconsciente e que me proporcionou ferramentas para a produção estética deste trabalho.
Quando fiz a escolha de fazer música instrumental, percebi que a linguagem da música é diferente, somos capazes de realizar uma paisagem sonora com nossos instrumentos, inclusive realizar uma arquitetura das imagens e pensamentos oníricos que memorizamos de nossos sonhos noturnos.
Então, esse trabalho não só enfatiza a importância dos processos inconscientes dos sonhos, mas também mostra caminhos possíveis para produzir singularidades, novos materiais composicionais autênticos que são produzidos pela nossa imaginação.
A ideia de tradição e reinvenção do violão de sete cordas parece algo muito caro para você como instrumentista. De que modo isso atravessa o processo de realização de “Sete Cordas e Um Poema”?
Aqui nos deparamos com um desafio, dialogar com a tradição é um esforço que realizo já há mais de uma década, tocando, lendo os livros de autores latino-americanos e entrevistando diversos músicos de nosso contexto. Hoje me sinto preparado para representar essa complexa cultura do chamamé, polca paraguaia, a música caipira e a música brasileira, tanto a popular como a erudita, que nos atravessa.
Nesse álbum, me desafiei a construir um repertório de violão sete cordas solo, fenômeno que ainda não havia acontecido especificamente na cultura de Mato Grosso do Sul. Por isso, está sendo muito gratificante realizar esse trabalho. Sinto que estou plantando uma semente de possibilidades, para o violão em específico e para música instrumental em geral, para que as próximas gerações tenham um caminho aberto para a realização da grande potência artística que tem nossa região.
Como esse trabalho se posiciona no horizonte da sua discografia?
Por um lado, esse trabalho é uma continuação e, por outro, uma ruptura com tudo que estava realizando. Pelos seguintes motivos: nos dois primeiros álbuns [“Entroncamento”, 2020, e “Dois Irmãos”, 2022], tratei de realizar meu sonho de tocar, improvisar e gravar minhas composições em grupo.
Então, pude realizar experimentos tocando em formações clássicas da música popular, com contrabaixo, bateria, saxofone, acordeon e outros instrumentos, além da formação dos grupos de choro e também das cordas de orquestra.
Neste álbum que lanço agora, resolvi sustentar sozinho uma ideia, dialogar com meu inconsciente e trazer à tona um conceito estético simples, singelo e intimista sobre a influência dos sonhos na criação musical, para tentar contribuir para a história da música de Mato Grosso do Sul a partir do violão de sete cordas.
Em que medida o show “Sete Cordas e Um Poema” (2024) contribuiu para o resultado final do álbum?
Sim, esse trabalho é a consequência de uma série de shows que realizei ao longo de 2024. A princípio, era apenas um experimento, mas o trabalho foi ganhando corpo, comecei fazendo transcrições de sonhos e construindo suas trilhas sonoras, quando vi, já tinha um repertório suficiente para gravar um álbum.
Esse processo foi importante, pois, ao mesmo tempo que o trabalho se construía, tornava-se mais maduro, também pelas respostas do público, que em todos os concertos me deu feedbacks maravilhosos de encantamento e acolhimento das ideias e fantasias oníricas desses sonhos musicais.
Poderia falar brevemente sobre os temas gravados?
Foram gravadas oito faixas, entre elas, três com declamações de poesias derivadas de sonhos. São em sua maioria chamamés oníricos, influenciados pela cultura pantaneira, mas também pela tradição da música de concerto ocidental, principalmente pelo francês Claude Debussy [1862-1918].
Tentei construir uma narrativa de mergulho em uma paisagem sonora de sonhos para finalizar em uma mensagem de festa e prazer de viver. Por isso finalizo o álbum com uma polca paraguaia chamada “Melhoras”, uma releitura de uma música que compus para meu primeiro álbum, mas que agora sinto em seu momento mais maduro.
Qual o desafio de gravar um disco de violão instrumental? Do ponto de vista da criação e performance e mais técnico mesmo, como captação, mixagem, etc.
Gravar um álbum solo talvez seja o maior desafio de um músico. Porque é necessário sustentar tudo, toda a arquitetura musical está em suas mãos, o músico, então, tem em si toda a responsabilidade pela performance da peça musical. O que pode causar uma grande aflição e angústia, em função de um perfeccionismo comum a todo artista, e também tem como consequência uma sensação de realização pessoal. Afinal de contas, nosso sucesso está em conseguir realizar algo, trazer à realidade um sonho, um produto sonoro que até então estava apenas na imaginação.
Mas também foi fundamental o trabalho de captação, mixagem e masterização do grande produtor musical Anderson Rocha e seu Estúdio 45, onde o álbum foi captado em um dia de gravação.
Algum tema rendeu mais trabalho ou cuidado durante o registro?
A música que me causou mais desafios foi “Ninho de Escadas”, pois, apesar de não ser a mais difícil tecnicamente, foi no nível paisagístico a mais complexa, pois no sonho havia um zumbido incômodo, mas bem interessante sonoramente. Então, conseguimos traduzir esse som em música por meio da movimentação de um tubo de PVC flexível, que, ao girar, fazia um som parecido com uivos de animais na floresta, ou mesmo com o som de vento atravessando as montanhas e as árvores, um efeito bastante interessante.
E quanto à imagem da capa escolhida? O que te fascina na expressão de Humberto Espíndola?
Para mim, Humberto Espíndola é, sem dúvida, o maior artista da história de Mato Grosso do Sul. Por sua bela e complexa obra e também por seu impacto social, derivado de seu posicionamento artístico, e sua expressão avassaladora, com a construção do conceito de cultura bovina e sua crítica contra a ditadura militar de 1964.
Em 2022 ele fez uma obra para mim, e essa obra, a meu ver, sintetiza todo esse meu novo trabalho, pois traz em si características facilmente comparáveis a um sonho, em que temos zoomorfismos relacionados ao que Freud chama de condensação e com descolamentos espaciais só possíveis em obras de arte e em sonhos, como a inversão das mãos, a aproximação da Terra e do cosmos e o violão como instrumento que carrega o próprio universo dentro de si. Ou seja, metáforas capazes de dizer visualmente o que busquei trazer dos sonhos nas músicas desse novo álbum.
Ninho de Escadas
Me lembro de um sonho
No meio do Pantanal
encontro um ninho de escadas
A terra tinha parido escadarias
que sumiam no céu
sem corrimão
Era gente que subia
Era gente que descia
numa elegância bonita de se ver
Ninguém se desencontrava, uai!
Lá no alto, parecia que todo mundo
estava caminhando para baixo
Mas sumia no horizonte
De certo caminhavam para cima
Não sei
Tudo se apagou
e acordei
(Julio Borba)
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