O pau-santo é uma árvore que produz uma resina, preta e brilhante, utilizada por mulheres da etnia kadiwéu para confeccionar suas tradicionais e belas peças de cerâmica.
Aos homens, cabe retirar, da árvore já morta, as toras de madeira da qual se extrai a resina. Mas a semente do pau-santo é coisa rara de se ver.
Pelo menos era. O cenário está mudando para melhor, graças a uma iniciativa que soma esforços dos kadiwéu com três instituições, a ONG Wetlands International Brasil, o coletivo Mupan – Mulheres em Ação no Pantanal e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), por meio do Laboratório Ecologia da Intervenção (LEI).
Trata-se do Programa Corredor Azul (PCA), que está unindo as pontas da conservação ambiental e da criação artística em prol da perpetuação da espécie e de toda uma cultura ancestral que se ergue a partir dela.
“Não existe cerâmica kadiwéu sem o pau-santo”, sintetiza Silvana Derriune, moradora da Aldeia Barro Preto, ao comentar a importância da árvore para a continuidade do valioso trabalho das mulheres ceramistas kadiwéu.
Um dos focos do projeto é desvendar os mistérios da reprodução da planta e identificar técnicas para cultivo em viveiro. Mesmo em fase inicial, a pesquisa já obteve feitos inéditos. Por exemplo, os kadiwéu voltaram a ver a semente da árvore graças às expedições.
“Até pessoas com mais de 70 anos afirmam nunca terem visto a semente do pau-santo antes”, revela Silvana.
“O plantio é um mistério para a gente, só sabemos que, aqui, a planta é encontrada no Pantanal, no Cerrado não dá. Espero que o estudo traga respostas que ajudem com a cerâmica e a natureza”.
CAPÕES
Já foram realizadas duas expedições voltadas ao pau-santo com o propósito de sondagem e busca por exemplares de espécies no Território Indígena Kadiwéu, maior reserva indígena no Pantanal, com 538 mil hectares, situada no município de Porto Murtinho (MS).
No TI Kadiwéu, as expedições têm a Wetlands International Brasil e a Mupan como facilitadores, segundo aponta Lilian Pereira, coordenadora de Assuntos Indígenas e Comunidades Tradicionais da Wetlands International Brasil.
“Já temos parceria com a UFMS, por meio do Projeto Noleedi [que desde 2019 desenvolve estudos sobre o efeito do fogo no Pantanal]. Então, quando falamos do novo projeto da Universidade às lideranças, houve um interesse imediato da comunidade”, pontua Lilian Pereira, coordenadora de Assuntos Indígenas e Comunidades Tradicionais da Wetlands International Brasil.
Lilian vê no Programa Corredor Azul o grande canal de diálogo com os kadiwéu. “Desde 2018, a convite dos indígenas, temos uma parceria que permite realizar ações em busca da valorização dos conhecimentos tradicionais e empoderamento da etnia. São quatro anos de trabalho e muita confiança entre as partes”.
As mostras de pau-santo foram coletadas em capões do Pantanal, áreas próximas de rios que alagam em época de chuvas. De 1 a 60 hectares, os capões são verdadeiras ilhas arbustivas no bioma, que se sobressaem na paisagem pelo verde e volume da vegetação.
MATA BONITA
“De 4 a 20 metros de altura, o pau-santo ocorre no Brasil, na Argentina, no Paraguai e na Bolívia. Em território nacional, é uma espécie que ocorre no Pantanal e que não se sabe qual o status de conservação dela. Porém, em outros países a árvore está ameaçada”, destaca a bióloga Letícia Couto Garcia.
Letícia atua como coordenadora do projeto e professora no LEI. Segundo a pesquisadora, o laboratório utilizará todas as informações dos estudos “na identificação de áreas prioritárias para manejo integrado do fogo, na restauração e no interesse cultural dos kadiwéu”.
A partir das sementes, experimentos estão sendo realizados no laboratório da UFMS, enquanto na Aldeia Barro Preto uma equipe mista da Wetlands International Brasil e da Mupan acompanha os indígenas nos testes de rebrota de raízes e galhos de pau-santo.
O viveiro onde se realizam os testes chama-se Nialigui Libineningui – em português, Mata Bonita – e foi construído com recursos do PCA, em julho deste ano.
ARTE ORIGINAL
A cerâmica kadiwéu é apreciada, no Brasil e internacionalmente, tanto pela originalidade – com traços geométricos únicos – quanto por sua longa tradição mantida por gerações.
Desde o século 18, período em que se tem registro das primeiras peças encontradas, pouca coisa mudou na forma de produção.
Uma peça leva, em média, cinco dias para ficar pronta, tempo dedicado à busca por matéria-prima em barreiros, situados no bioma Cerrado e no Pantanal, o preparo da argila, a escolha da areia colorida, com os mais variados tons para a pintura, e todo o processo de seca, queima e aplicação de verniz – a base de resina de pau-santo – nas cerâmicas.
“VONTADE DE BELEZA”
O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), que esteve com os kadiwéu no fim dos anos 1940, documentou as qualidades artísticas dos kadiwéu como “a pura vontade de beleza”, ou seja, um artesanato com senso estético apurado, que transcende o aspecto utilitário dos objetos.
Darcy equipara o valor etnográfico da produção kadiwéu a outras artes milenares.
“Assim como a gente fala de desenhos de gregos, persas e hebraicos, pode-se falar de um outro padrão muito bonito, que é o desenho geométrico kadiwéu. Eles não fazem nunca um desenho figurativo, quase como os muçulmanos, que não fazem a figura humana”, observa o antropólogo.
Se a beleza de sua cerâmica contribuiu, e contribui, para que a identidade e memória dos kadiwéu permaneçam resistindo, a arte também se torna aliada na conservação do pau-santo. Preservá-lo é uma forma de perpetuar o DNA artístico deste povo guerreiro que nunca deixou de lutar pela sua própria história.
“A cerâmica é uma tarefa exclusiva das mulheres. Com a nossa arte, ajudamos no sustento de casa, na criação de filhos e netos e, claro, na preservação da identidade da nação kadiwéu. Aprender a cultivar o pau-santo é dar continuidade à nossa história”, afirma a artista Creuza Virgílio, presidente da Associação de Mulheres Artistas Kadiwéu (Amak).