Nos quatro anos de um Brasil inculto ocorreu a ocupação do espaço cultural por conservadores fundamentalistas em cargos de comando, resultando em controvérsias relativas às mudanças na estrutura administrativa dos setores culturais ou mesmo em declarações inconsistentes, atrasadas e negacionistas sobre os valores e as conquistas do setor, sendo capazes de engessar a criatividade, o fomento e o financiamento do mercado cultural.
As justificativas para o desmonte da cultura levaram em conta a incompreensão da pluralidade do pensamento artístico, o desconhecimento sobre a administração da cultura como política pública e os incentivos governamentais como parte da atividade econômica de uma sociedade, desconsiderando, inclusive, os empreendimentos culturais sustentados por empreendedores privados – depreciados por narrativas falaciosas, fake news e propagandas antidemocráticas.
Mas antes tarde do que nunca, e, no “apagar derradeiro das luzes”, descobrimos que nem tudo na cultura está perdido, pois a sociedade tem dentro de si a necessidade e o anseio de se expressar nas demandas reprimidas, mesmo quando em manifestações sociopolíticas, que representam, em algum ponto de vista, a cultura ou a falta dela.
É o caso dos movimentos antidemocráticos, ações coletivas que visam a busca de identidade, a relação entre assemelhados políticos, na presença em frente aos quartéis militares, ensaiando palavras de ordem, cantatas de hinos militares, cultos a céu aberto em adoração a objetos físicos (caminhões, pneus) alheios a qualquer doutrina, danças, formações e marchas, interpretação de uma “performance”, talvez uma “instalação cultural”, chegando a representar um auto teatral religioso com a presença de um Cristo crucificado em um poste de iluminação, cercado de centuriões com macacões e capacetes industriais.
Cultura, plena cultura, logo no desfecho de um governo que perseguiu a cultura.
Esses eventos têm certa semelhança com o pensamento de Erasmo de Roterdã, que em seu ensaio “Elogio da Loucura” (Paris, 1511) se referenciava satiricamente no “louvor à loucura”, na liberação da criatividade e da vontade do ser humano e ao afirmar que seres humanos possuem esquisitices.
Descrevia que só a loucura era capaz de prolongar a juventude carente de juízo, mas pródiga em humor, e ao mesmo tempo manter distante a velhice, quando esmorece a beleza e decresce a força vital e cujas ações se movem por meio das paixões.
Ele retratava ironicamente os contrassensos, os desvarios e os infortúnios próprios das classes sociais e das instituições.
Poderíamos também consentir que tais ações coletivas se identificariam no campo cultural ao “Teatro do Absurdo” (Inglaterra, 1961), designação para obras teatrais que reuniam aspectos imprevisíveis do comportamento humano, sobre o existencialismo, escola filosófica em busca de um sentido de vida, um propósito por meio da liberdade irrestrita, de escolha própria e suas consequências.
O “Teatro do Absurdo” reúne peças com temas fantasiosos, idealistas, visionários ou utopistas, resultados do desgosto e da incomunicabilidade do mundo moderno, onde os personagens têm atitudes estranhas, sem razões aparentes ou justificativas plausíveis, beirando a vulgaridade e a infantilidade.
A coletânea das peças deste gênero encerra a contrariedade, a irracionalidade e a desigualdade social, espelhando o quotidiano atual, sendo, entre elas, a mais caricata, intitulada “Esperando Godot” (S. Beckett, 1953), que se desenrola loquazmente entre falas e diálogos “nonsense”, entre dois personagens que alternam as emoções de súbito e, desmemoriados, esquecem-se de suas identidades e eventos recentes ocorridos, enquanto dialogam extenuadamente, aguardando a chegada de um terceiro que lhes traria a satisfação de uma nova expectativa, mas que não chega nunca...
O termo “cultura” se remete, entre diversas definições, ao modo de vida, ao conjunto de saberes, à religião, às crenças, aos costumes e a outras expressões populares.
As manifestações patrióticas atuais têm sido analisadas em busca de justificativas por diversas correntes de pensamento, indo da negação, rejeição, desinteresse e falta de compromisso cidadão.
Outros acreditam que a origem resulta da ambiência, de uma bolha midiática, de grupos “identitários” e de dar crédito a narrativas que nos dão satisfação.
Presumo, no entanto, que se trata da liberação de uma pressão natural reprimida que é a representação da própria vida, externalizada pelos comportamentos e atitudes dessa gente que não tivemos a oportunidade de vivenciar, embora saibamos, a partir desses três exemplos e das manifestações, um sentimento de Cultura, justo aquele que foi subvertido nesse período medieval.