Férias combina com leitura. É tempo de ler algumas obras que o corre-corre diário não permite. São livros que exigem mais reflexão e meditação e que possibilitam tecer algumas pontes entre o passado e o presente. Trazem ensinamentos que muitas vezes estão sendo esquecidos pela maioria da população. Mas as férias também são usadas para o descanso e para os passeios. Aqueles que optam por ficar na cidade, por falta de opção, acabam tendo que se render ao shopping center e ao cinema. Eu me deixei dobrar e aca bei aprendend o u m a dura lição sobre como a corrupção consegue atingir o dia a dia das pessoas. Depois de ter lido cinco livros e preparado as aulas que vou ministrar neste semestre, optei por encerrar a semana assistindo um filme. Queria apenas relaxar e me divertir um pouco. Mas, como as opções de lazer em Campo Grande são poucas, as pessoas acabam geralmente escolhendo o shopping center, templo do consumismo, como forma de lazer. A intenção era apenas ver pessoas, fazer parte do convívio social e humano sem precisar pensar muito. Não consegui. Fui surpreendido e chamado à realidade logo que cheguei ao shopping. Estacionamento lotado. Depois de rodar por aproximadamente uns dez minutos sem encontrar uma vaga, passa um senhor com esposa e filhos e faz um sinal indicando onde está seu carro. Não dá tempo. Outro motorista já estava parado perto do local onde aquela família cordial havia me indicado que sobraria uma vaga. Permaneço parado e vejo dois homens se aproximarem do meu carro enquanto a esposa de um deles com duas crianças vai se dirigindo lentamente para o veículo estacionado do outro lado de onde me encontrava. Eles chegam e, com a maior cara de pau, um deles diz que quer fazer uma troca: a vaga no estacionamento do shopping pelo cartão que eu havia acabado de pegar na entrada. Não entendi o que ele queria e pedi que se explicasse. Ele então me mostra como a corrupção já faz parte do DNA brasileiro. Fiquei pasmo. Não queria acred it a r no que estava escutando. Aquele senhor estava me propondo trocar o meu cartão do estacionamento, ainda nos minutos de tolerância, pelo dele. Como parte da troca eu ficaria com a vaga onde seu carrro estava estacionado. Agradeci e fui procurar outra vaga, mas percebi que o motorista do carro que estava logo atrás do meu acabou aceitando e ficou com o lugar. Confesso que naquela noite cheguei em casa atordoado. Me dei conta que a criatividade ou a corrupção do povo brasileiro não tem limites. Ao pensar sobre o assunto e até tentando digerir a supresa da proposta, acabei me deparando com o livro “Dos deveres”, do escritor romano Marco Túlio Cícero. Uma obra escrita antes da era cristã e que busca mostrar que os deveres decorem da honestidade e de todo tipo de virtude. Cícero (1999, p. 88) defende que “tudo vai pelo pior quando o que deve ser obtido pela virtude é tentado pelo dinheiro”. É importante observar que em toda a obra o autor defende que as pessoas de bem buscam as coisas honestas. Pensar sobre isso chega a ser assustador. As pessoas não estão se dando conta que as cidades só foram edificadas e habitadas pela união das pessoas. Mas estamos chegando a um momento crucial, no qual o individualismo está cada vez mais forte e com isso as pessoas estão perdendo a própria humanidade. Ninguém mais pensa na coletividade, nas regras de conduta e de bem viver. As pessoas querem tirar proveito de tudo. Ao negociar a vaga no estacionamento para não pagar R$ 3,50, aquele desconhecido mostra a todos que a corrupção está tomando conta das atitudes mais simples e colocando em risco as próprias regras de convivência social. A corrupção deve ser tratada como uma doença. Desta forma seria fácil perceber que somos uma nação doente. Isso quem sabe permitiria alguma estratégia de saúde coletiva. Se ela também não funcionasse, ainda teríamos a saída utilizada por aqueles que são dependentes do álcool e que se esforçam para deixar o vício. Eles se comprometem em viver um dia de cada vez sem fazer uso da bebida. E, quando chegam ao final de um dia comemoram a vitória da sobriedade. Poderíamos adotar esta tática e tentar só por hoje não ser corrupto. Quem sabe daqui algumas décadas, séculos ou milênios possamos comemorar um dia sem corrupção no Brasil... um sonho. Mas voltando ao livro é importante ressaltar que “Dos deveres” prima pela conduta honesta. Isso fez com que essa obra notável sobre ética prática, ganhasse um lugar de destaque na história do pensamento universal. Embora Cícero afirme que os preceitos sobre o dever aplicam-se à vida como um todo, o que lhe interessa é o comportamento dos homens em sociedade. Para Cícero (1999, p. 12) só “manteremos a honestidade e o decoro se atribuirmos ordem e medida àquilo que fizermos”. Quem sabe seja por isso que o autor defenda que o primeiro ditame da justiça é ninguém prejudicar a outro. Preceito simples, mas que as pessoas estão se esquecendo de colocar em prática. Como defensor da boa contuda e dos bons princípios ele defende que a fraude será sempre odiosa. É bom lembrar que esta obra foi escrita há mais de dois mil anos. Seu autor não conheceu o Brasil. No entanto, o que ele escreveu pode ajudar a nação brasileira a se levantar da lama de corrupção que se vê envolvida há algum tempo. Cícero (1999, p. 24) argumenta que “de todas as formas de injustiça, nenhuma há mais criminosa do que a praticada por aqueles que, enganando ao máximo, fazem-se passar por homens de bem”. É fácil perceber que o autor entende que são nas pequenas atitudes que se revela o caráter de uma pessoa. Estóico por opção filosófica, Cícero sustenta que a finalidade da vida é a virtude. A virtude seria o único bem, e viver bem significaria viver virtuosamente. Desta forma só é bom aquilo que é honesto. Por isso, somente o homem virtuoso e sábio é de fato feliz, quaisquer que sejam as circunstâncias.