A falta de tempo dos nossos tempos se faz acompanhar de uma série de pessoas e coisas que vamos deixando para trás. É praticamente impossível apreender tudo. É praticamente impossível considerar a todos.
É como se todos disséssemos repetidas vezes “por que ensinaste a clareza da vista, se não podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?” (Ouvi pela primeira vez estes versos de Fernando Pessoa na voz de Maria Bethânia, nos meus anos dourados.) Em contextos muito diferentes, penso que as questões do poeta ainda são cabíveis.
O que pode a nossa visão entre tantas que nos são dadas, espontânea ou seletivamente? Como escolher quem ou o que ver? Como resistir ao apelo dos outdoors, dos painéis eletrônicos, digitais? Como deixar de encontrar aqueles a quem dedicamos nossos afetos? E, principalmente, como ver e ver-se? Com os olhos da alma?
Ainda da literatura portuguesa recupero em Camões uma identidade que me toca: os olhos, o espelho e a alma – “se dentro nesta alma ver quiserdes como num claro espelho, ali vereis também a vossa, angélica e serena”.
Uma diversificada tradição liga os olhos à alma e vem de muito longe. Na casa de minha avó, “psichê” era o móvel com espelho do quarto de dormir. Psyché significa o sopro original, a alma. É um mito, mas também o título de uma peça de Molière e de um quadro de Ingres.
Não é à toa que para ter uma compreensão melhor das coisas do mundo, Alice teve a necessidade de atravessar e ver o que havia de tão interessante do outro lado do espelho: os quadros com vida, o relógio que sorri, as peças vivas do jogo de xadrez.
Já no documentário de João Jardim e Walter Carvalho, “Janela da Alma”, um dos entrevistados, o diretor de cinema Win Wenders, acredita que apenas em parte vemos com os olhos, pois podemos fazê-lo também com o estômago e com a alma.
Prefere usar óculos para não ver demais, para selecionar, para enquadrar.
No filme “Paris, Texas”, dirigido por Wenders, numa das cenas finais, a cena do peep-show, Travis (Harry Dean Stanton), usando o distanciamento da terceira pessoa, conta para Jane (Natassjia Kinsky) o que aconteceu com eles.
Aos poucos Jane toma consciência da situação e, então, o rosto de Travis se confunde com o rosto de Jane no espelho, como a mostrar que apenas lá poderiam se encontrar.
Andei pensando nessas coisas todas e conclui que não há nada que me dê mais prazer do que encontrar velhos amigos.
Velhos, aqui, não reporta à idade das pessoas, mas ao sentimento que a elas dedico.
Compromissos de trabalho sempre me proporcionaram amigos que, embora intermitentes, não diminuem a camaradagem e a troca de afeto.
Na semana que passou, vivi esses encontros em duas ocasiões e pude perceber o quanto representaram ao longo da minha vida. E por quê? Entrei pelo espelho de Camões, saí do outro lado com Milton Nascimento e comecei a cantarolar: “porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e os sonhos não envelhecem”. Taí!