Artigos e Opinião

CRÔNICA

Maria Adélia Menegazzo: "Quase um clube de esquina"

Maria Adélia Menegazzo: "Quase um clube de esquina"

Redação

18/08/2015 - 00h00
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A falta de tempo dos nossos tempos se faz acompanhar de uma série de pessoas e coisas que vamos deixando para trás. É praticamente impossível apreender tudo. É praticamente  impossível considerar a todos. 

É como se todos disséssemos repetidas vezes “por que  ensinaste a clareza da vista, se não podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?” (Ouvi  pela primeira vez estes versos de Fernando Pessoa na voz de Maria Bethânia, nos meus anos dourados.) Em contextos muito diferentes, penso que as questões do poeta ainda são cabíveis. 

O que pode a nossa visão entre tantas que nos são dadas, espontânea ou seletivamente?  Como escolher quem ou o que ver? Como resistir ao apelo dos outdoors, dos painéis  eletrônicos, digitais? Como deixar de encontrar aqueles a quem dedicamos nossos afetos? E, principalmente, como ver e ver-se? Com os olhos da alma? 

Ainda da literatura portuguesa recupero em Camões uma identidade que me toca: os olhos, o espelho e a alma – “se dentro nesta alma ver quiserdes como num claro espelho, ali vereis também a vossa, angélica e  serena”. 

Uma diversificada tradição liga os olhos à alma e vem de muito longe. Na casa de minha avó, “psichê” era o móvel com espelho do quarto de dormir. Psyché significa o sopro original, a alma. É um mito, mas também o título de uma peça de Molière e de um quadro de Ingres. 

Não é à toa que para ter uma compreensão melhor das coisas do mundo, Alice teve a necessidade de atravessar e ver o que havia de tão interessante do outro lado do espelho: os quadros com  vida, o relógio que sorri, as peças vivas do jogo de xadrez. 

Já no documentário de João Jardim e  Walter Carvalho, “Janela da Alma”, um dos entrevistados, o diretor de cinema Win Wenders, acredita que apenas em parte vemos com os olhos, pois podemos fazê-lo também com o estômago e com a alma. 

Prefere usar óculos para não ver demais, para selecionar, para  enquadrar.

No filme “Paris, Texas”, dirigido por Wenders, numa das cenas finais, a cena do  peep-show, Travis (Harry Dean Stanton), usando o distanciamento da terceira pessoa, conta  para Jane (Natassjia Kinsky) o que aconteceu com eles. 

Aos poucos Jane toma consciência da situação e, então, o rosto de Travis se confunde com o rosto de Jane no espelho, como a  mostrar que apenas lá  poderiam se encontrar.

Andei pensando nessas coisas todas e conclui que não há nada que me dê mais prazer do que  encontrar velhos amigos. 

Velhos, aqui, não reporta à idade das pessoas, mas ao sentimento  que a elas dedico.

Compromissos de trabalho sempre me proporcionaram amigos que, embora  intermitentes, não diminuem a camaradagem e a troca de afeto.

Na semana que passou, vivi esses encontros em duas ocasiões e pude perceber o quanto representaram ao longo da minha vida. E por quê? Entrei pelo espelho de Camões, saí do outro lado com Milton Nascimento e comecei a cantarolar: “porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e os sonhos não envelhecem”. Taí!

 

editorial

Violência contra a mulher e ações efetivas

Setores nostálgicos da sociedade ainda pregam o retorno a um modelo em que a mulher era silenciada, confinada ao lar e privada de voz pública

13/06/2025 07h00

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O mais recente Mapa da Segurança Pública, divulgado nesta semana pelo Ministério da Justiça, trouxe novamente um dado alarmante: o Estado de Mato Grosso do Sul continua figurando entre os líderes do ranking nacional quando o tema é violência contra a mulher. Trata-se de uma repetição trágica que vem se confirmando ano após ano, sem que haja sinais de uma reversão estrutural. Os números são um reflexo doloroso de uma realidade que exige, com urgência, uma abordagem séria, objetiva e comprometida por parte das autoridades.

O enfrentamento da violência contra a mulher exige mais do que discursos bem-intencionados. Ele exige dados, precisão nas políticas públicas e, sobretudo, vontade política. A primeira e mais óbvia necessidade é garantir que os agressores sejam punidos com rigor. Não por desejo de vingança, mas por um princípio essencial do Direito Penal: a punição eficaz tem função pedagógica e dissuasória. Onde há impunidade, há incentivo ao crime. Onde há resposta firme do Estado, há limites sendo reafirmados.

Mas a efetividade da lei não se mede apenas pela quantidade de anos previstos em uma pena. A lei só é respeitada quando é aplicada de forma real, rápida e visível. Isso requer mais do que papel e tinta — requer fiscalização, presença ostensiva, estrutura e recursos humanos preparados. Tudo isso custa dinheiro. E mais que isso: custa tempo, comprometimento e esforço coordenado entre o Executivo, o Judiciário, os órgãos de segurança e os sistemas de proteção social.

A verdade incômoda é que, sem vontade política clara e corajosa para enfrentar os agressores de mulheres, os números continuarão altos. Não se pode permitir que casos de violência sejam tratados com negligência ou relativismo, como se fossem apenas conflitos domésticos ou “questões privadas”. A omissão do poder público e da sociedade civil, em qualquer nível, é cúmplice da perpetuação da violência.

Além da resposta penal, há um desafio ainda maior: o da transformação cultural. É preciso romper com a cultura da subjugação das mulheres, que ainda encontra espaço em muitos setores da sociedade. Não adianta o Estado fazer campanhas sobre respeito e igualdade se, ao mesmo tempo, líderes religiosos ou comunitários reforçam discursos que colocam a mulher em posição de inferioridade. A sociedade precisa decidir, coletivamente, qual papel deseja dar às mulheres — e essa decisão deve ser baseada em igualdade, dignidade e liberdade.

É verdade que os tempos mudaram, e que hoje há mais autonomia feminina do que em décadas passadas. No entanto, setores nostálgicos da sociedade ainda pregam o retorno a um modelo em que a mulher era silenciada, confinada ao lar e privada de voz pública. Essa nostalgia que não respeita a autonomia da mulher — muitas vezes romantizada como “valores da família” — precisa ser encarada como parte do problema, e não como solução.

Reduzir a violência contra a mulher no Mato Grosso do Sul e no Brasil é possível. Mas isso exigirá ação efetiva, punição exemplar aos agressores, investimento público contínuo e coragem para enfrentar costumes nocivos à diginidade das mulheres ainda presente nas instituições e no cotidiano. Não há caminho mais curto — nem mais necessário.

ARTIGOS

Caetano canta música evangélica e o erro estratégico de setores progressistas

10/06/2025 07h45

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A cena é recorrente nos shows de Caetano Veloso: após sucessos consagrados de seu repertório, o artista entoa a canção “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas. A resposta do público, composto em larga medida por admiradores laicos, progressistas e críticos do fundamentalismo religioso, é fria, por vezes, entremeada por vaias.

Muitos entendem essa escolha uma provocação deslocada, uma suposta concessão ao bolsonarismo, dado o histórico apoio evangélico à extrema direita. No entanto, essa leitura é, para dizer o mínimo, apressada e míope. Caetano não cede ao senso comum, mas propõe, pela via da música, uma reflexão profunda sobre escuta, alteridade e a complexidade da experiência religiosa no Brasil.

Reduzir os evangélicos à caricatura do reacionário militante é ignorar a pluralidade real e histórica desse campo e, no atual estado de coisas, incentivar a radicalização de muitos grupos.

Kleber Lucas, pastor batista, negro, progressista e oriundo de comunidade periférica no Rio de Janeiro (RJ), é um exemplo eloquente da riqueza que existe dentro do universo evangélico. Sua trajetória, marcada por pontes entre tradições religiosas, pelo respeito às culturas de matriz africana e pelo compromisso com a justiça social, destoa da retórica de ódio que contaminou setores das igrejas.

Quando Caetano escolhe cantar Kleber, ele o faz com plena consciência: não por ignorância sobre a força do bolsonarismo entre evangélicos, mas justamente para resgatar, em meio ao ruído, vozes que dissonam e que são invisibilizadas. Há, portanto, um erro estratégico e moral no impulso de vaiar Caetano. Rejeitar a canção e a sua proposta é rejeitar o convite a enxergar o outro em sua inteireza, com suas contradições e insurgências internas.

Ao zombar da religiosidade popular, sobretudo quando encarnada em sujeitos negros, pobres e periféricos, setores do campo progressista acabam por reproduzir o elitismo que denunciam e contribuem, inadvertidamente, para o isolamento de milhões de brasileiros.

O abandono simbólico das massas evangélicas, tratadas como um bloco homogêneo e retrógrado, é uma das razões pelas quais a extrema direita tem conseguido monopolizar esse campo. A política, afinal, não se faz só com razão: exige também empatia, imaginação e capacidade de escuta.

Cantar Kleber Lucas em um palco para o público majoritariamente progressista é, da parte de Caetano Veloso, um gesto político potente e perigosamente mal compreendido. Se a esquerda deseja cativar um público maior, precisa deixar de lado o conforto da superioridade moral e compreender, com generosidade e estratégia, a religiosidade do povo.

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