Antes mesmo de as facções criminosas Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC) disputarem o domínio do tráfico de drogas na fronteira entre Capitán Bado, no Paraguai, e o município sul-mato-grossense de Coronel Sapucaia, a divisa era comandada por um clã familiar que contrabandeava produtos na região.
A família Morel, que era chefiada por João Morel, foi considerada dos anos 1990 até o início dos anos 2000 como o principal cartel de traficantes que comandava o narcotráfico no Paraguai.
Desde os anos 1960, as autoridades do país vizinho já suspeitavam que o clã criminoso de Capitán Bado, que possuía varias propriedades na cidade, tinha envolvimento na prática de contrabando de café e de ervas na fronteira.
Conforme informações do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Narcotráfico, realizada em 2000, a partir dos anos 1970, por meio de interceptações de carregamentos de cargas, a polícia identificou que João Morel começou a se envolver com o tráfico de drogas, tornando-se foragido a partir de 1993, quando foi decretada a prisão de João Morel pela Justiça de Sapucaia do Sul (RS), por envolvimento com o tráfico de drogas.
Neste período, João Morel e seus filhos Ramon Morel e Mauro Ezequiel Morel utilizavam as pistas de pouso para pequena e média aeronaves em suas fazendas para carregar cocaína que chegava da Bolívia e da Colômbia com destino para os mais diversos pontos do Brasil.
Desses locais onde atuava a família Morel também saía a maioria dos carregamentos de maconha para grandes traficantes e compradores de droga de vários estados, entre eles, o traficante carioca Fernandinho Beira-Mar, que de “sócio de confiança” do clã se tornou o principal inimigo da família paraguaia.
GUERRA COM BEIRA-MAR
Conforme informações de edição de 2001 do Correio do Estado, o fim da parceria entre Beira-Mar e a família Morel na fronteira ocorreu após a prisão de Jaime Amato, um amigo de confiança de Beira-Mar, que teria sido preso por conta de informações repassadas sobre seu paradeiro pelos irmãos Morel.
Em represália à prisão do amigo, Fernandinho Beira-Mar encomendou o assassinato de Ramon Morel e Mauro Ezequiel Morel, filhos de João Morel, que foram fuzilados por quatro homens em um sítio na cidade de Capitán Bado, no dia 13 de janeiro de 2001.
Na semana seguinte às execuções, no dia 21 de janeiro, João Morel também foi assassinado dentro do Presídio de Segurança Máxima de Campo Grande por um companheiro de cela.
Além das motivações mencionadas, suspeita-se que as execuções encomendadas por Beira-Mar também envolviam uma disputa pelo controle total do tráfico de drogas na região, que, na época, era o principal ponto de transporte de entorpecentes do Paraguai para o Brasil.
A polícia do Paraguai acredita que os filhos de Morel foram assassinados a mando do traficante Fernandinho Beira-Mar por estarem facilitando a prisão dos integrantes da quadrilha carioca.
No caso de João Morel, que estava preso, o traficante do Rio de Janeiro teria entrado em contato com detentos e mandado matar o chefe do clã no período em que estava foragido na Colômbia.
A morte de João Morel resultou, anos depois, na condenação de Beira-Mar, no dia 10 novembro de 2009. A sentença, proferida em julgamento no Tribunal do Júri de Campo Grande, foi de 15 anos de prisão.
CONFLITO ENTRE PCC E CV
Ao Correio do Estado, o delegado de polícia aposentado Fernando Lopes Nogueira, que atualmente é coordenador da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), informou que a atual guerra entre as facções Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital na fronteira de MS começou após a morte do traficante Jorge Rafaat, que comandava a região fronteiriça de Ponta Porã e foi assassinado em 2016.
“O tráfico começou a se intensificar na fronteira após a morte de Jorge Rafaat. Apesar de ser um criminoso, ele tinha o controle das relações fronteiriças com o tráfico, e isso passava a sensação de que a situação estava controlada por ele, mas, após a morte, dele vieram para a fronteira diversas organizações criminosas, que começaram a se digladiar para ver quem têm mais poder”, enfatizou o coordenador.
O atual confronto resultou nas execuções de quatro pessoas, entre os dias 12 e 15 deste mês, na região de fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Essas mortes evidenciam a retomada da disputa por território do tráfico de drogas na fronteira de Capitán Bado e Coronel Sapucaia.
Sobre as mortes, a Delegacia de Polícia de Coronel Sapucaia ressaltou a preocupação das forças de segurança da região com os recentes casos de execução.
“A Polícia Civil está acompanhando de perto os recentes homicídios ocorridos em Coronel Sapucaia, bem como monitorando os desdobramentos dos fatos registrados na cidade de Capitán Bado, no Paraguai. A hipótese de envolvimento com o tráfico de drogas ou atuação de facções criminosas está sendo considerada, mas ainda carece de elementos concretos que permitam uma conclusão responsável”, respondeu, em nota.
Porém, o titular da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Antonio Carlos Videira, confirmou a existência de um conflito entre facções nesta região da fronteira.
“Há uma disputa por território nesta região, que já foi palco de disputas anteriores, e hoje a gente tem nela o PCC querendo dominar toda a cadeia produtiva de drogas, desde a produção até a distribuição nos grandes centros”, declarou Videira.
Em maio deste ano, uma matéria do Correio do Estado mostrou que a trégua entre PCC e CV, que teria começado em fevereiro, havia chegado ao fim.
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), CV e PCC deram fim a um acordo de paz. Como mostrou a reportagem, a medida poderia trazer animosidade entre as facções e reacender a violência na região de fronteira de Mato Grosso do Sul, onde ambas estão instaladas e de onde operam o tráfico de drogas.
CRONOLOGIA
1960 > Família Morel começa a ser procurada pelas polícias paraguaia e brasileira, acusada por envolvimento no contrabando de café;
1967 > Membros da família indiciados em inquérito policial por envolvimento com o tráfico de drogas;
Anos 1990 > João Morel é citado, na imprensa paraguaia e brasileira, como integrante de um cartel de traficantes de cocaína e por comandar o tráfico no Paraguai;
Março de 2000 > João Morel é preso ao atravessar a fronteira, período em que prestou depoimento à CPI do narcotráfico, em Brasília;
13 de janeiro de 2001 > Ramão Cristobal, de 35 anos, e Mauro Ezequiel, de 24 anos, filhos de João Morel, foram mortos com tiros de metralhadora em Capitán Bado. Desde o ocorrido, a polícia paraguaia suspeitava que eles haviam sido assassinados a mando do traficante Fernandinho Beira-Mar;
21 de janeiro de 2001 > João Morel é assassinado a golpes de estilete no Presídio de Segurança Máxima de Campo Grande por companheiro de cela;
Anos 2000 > O Comando Vermelho se estabelece no controle do narcotráfico de maconha na fronteira entre Capitán Bado e Coronel Sapucaia;
10 de novembro de 2009 > Fernandinho Beira-Mar é condenado a 15 anos de prisão por ser o mandante do assassinato de João Morel;
Fevereiro de 2025 > Ministério da Justiça e Segurança Pública identifica acordo de paz entre CV e PCC, que teria como objetivo flexibilizar o tratamento a líderes presos no sistema penitenciário federal;
Maio de 2025 > A Secretaria Nacional de Políticas Penais informa que CV e PCC deram fim a um acordo de paz;
12 e 15 de julho de 2025 > Quatro pessoas são executadas nas cidades de Capitán Bado e Coronel Sapucaia em nova briga entre PCC e CV pelo controle do tráfico na região.


